1.
naquele tempo toda a cidade ardia
e nós
ardíamos com ela mas sabíamos
que havia de chegar uma noite
em que as amarras (ou a
pátria tanto faz)
seriam mais fortes e entraríamos
em silêncio no quarto
inventando palavras tão
transparentes para a nossa vida
que hoje tenho dificuldade em
encontrá-las
para as colocar em seus devidos
lugares
tínhamos então a idade
de tudo o que nos acontecia pela
primeira vez
protegidos pela sombra dos
castanheiros de maio
e ainda que por breve tempo chegámos a acreditar
que um dia nos iríamos de novo
amar ali
exactamente ali
entre o rio as
pontes as estátuas
a praia que roubávamos ao asfalto
onde os dias pareciam sem desvio
e a dona do hotel a prometer-nos
domingos de sol
4.
o que verdadeiramente me dói não
são as palavras
que nestes anos todos ficaram
por dizer
arrumadas entre os medos que não
gritamos juntos
e os sonhos que não transpirei
na tua pele
o que verdadeiramente me dói são
os silêncios
que nunca habitámos do mesmo
lado
porque o silêncio só pode ser
partilhado
com aqueles que amamos até à
loucura
só ele é a dádiva perfeita que
não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para
deitar a cabeça
e esperar que a madrugada
lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais
seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos
mesmo que
os vinte anos tenham morrido
para sempre
na cidade em chamas
nunca os meus olhos guardaram
imagem mais nítida que a que a tua
entre os maços de gitanes
e a poeira de maio
no
minúsculo quarto em que tentámos acreditar
no
futuro que não iria ser o de ninguém
e no
entanto tu olhavas para mim e dizias
este
será o
lugar onde havemos de morrer
e os
nossos amigos marcavam encontros
para as
tardes em que estaríamos ali sozinhos
à
lareira de pacíficos invernos familiares
hoje
sei
que te
devia ter colado então ao meu silêncio
para
que levasses no fundo dos teus olhos
a cor
dos meus
ainda
que totalmente despidos de ti
mas não
fui a tempo e alguém junto a nós disse as
pequenas
mentiras mordem até ao fim
e eu
comecei a falar de outras coisas
mas foi
isso tenho a certeza que nos matou
por
isso te peço agora ajuda-me
a não
pecar outra vez do mesmo modo
para
que os deuses não se cansem
de
voltarem a pôr tudo no lugar certo
olha
para mim não tenhas medo dá-me
camélias cravos
azáleas o que houver
descobre a única palavra
verdadeiramente nossa
a
única a poder ensinar-nos ainda o rasto
das noites
em que a cidade era um braseiro
e nós ardíamos no lume das
pedras e das nossas línguas
enquanto
os pardais se confundiam na vidraça
das janelas que
escancarávamos por maio fora
e de repente eu disse os nossos
filhos
vão ver um dia este retrato e
querer saber
o que aconteceu
- mas nesse momento em que já
dificilmente
se articulavam as palavras
tu olhaste as horas e desceste
as escadas em silêncio
porque assim eu tinha pedido que fizesses
e a dona do hotel a prometer-nos
para além de domingos de sol
despedidas breves e indolores
Alice Vieira (2007) Dois corpos tombando na água, Poesia, Lisboa: Caminho (p. 13, 17-19).
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