mercoledì 7 gennaio 2015

Cinco breves momentos de Maio (1. e 4.), Alice Vieira

1.

naquele tempo toda a cidade ardia e nós
ardíamos com ela mas sabíamos
que havia de chegar uma noite
em que as amarras (ou a pátria    tanto faz)
seriam mais fortes e entraríamos
em silêncio no quarto
inventando palavras tão transparentes para a nossa vida
que hoje tenho dificuldade em encontrá-las
para as colocar em seus devidos lugares

tínhamos então a idade
de tudo o que nos acontecia pela primeira vez
protegidos pela sombra dos castanheiros de maio
e   ainda que por breve tempo   chegámos a acreditar
que um dia nos iríamos de novo amar ali
exactamente ali
entre o rio   as  pontes   as estátuas
a praia que  roubávamos ao asfalto
onde os dias pareciam sem desvio

e a dona do hotel a prometer-nos

domingos de sol 




4.

o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
arrumadas entre os medos que não gritamos juntos
e os sonhos que não transpirei na tua pele

o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado 
porque o silêncio só pode ser partilhado 
com aqueles que amamos até à loucura
só ele é a dádiva perfeita que não pede mais nada
a não ser um mesmo lugar para deitar a cabeça
e esperar que a madrugada lentamente desfaça
todos os segredos e nada mais seja preciso
para voltarmos a ter vinte anos mesmo que
os vinte anos tenham morrido para sempre
na cidade em chamas

nunca os meus olhos guardaram imagem mais nítida que a que a tua 
entre os maços de gitanes
e a poeira de maio

no minúsculo quarto em que tentámos acreditar
no futuro que não iria ser o de ninguém
e no entanto tu olhavas para mim e dizias   este
será o lugar onde havemos de morrer
e os nossos amigos marcavam encontros
para as tardes em que estaríamos ali sozinhos
à lareira de pacíficos invernos familiares

hoje sei
que te devia ter colado então ao meu silêncio 
para que levasses no fundo dos teus olhos
a cor dos meus
ainda que totalmente despidos de ti
mas não fui a tempo e alguém junto a nós disse as
pequenas mentiras mordem até ao fim
e eu comecei a falar de outras coisas
mas foi isso  tenho a certeza  que nos matou
por isso te peço agora  ajuda-me
a não pecar outra vez do mesmo modo
para que os deuses não se cansem
de voltarem a pôr tudo no lugar certo

olha para mim  não tenhas medo  dá-me                
camélias  cravos  azáleas  o que houver              
descobre a única palavra verdadeiramente nossa                 
a única a poder ensinar-nos ainda o rasto
das noites em que a cidade era um braseiro

e nós ardíamos no lume das pedras e das nossas línguas    
enquanto os pardais se confundiam na vidraça                   
das janelas que escancarávamos por maio fora

e de repente eu disse os nossos filhos
vão ver um dia este retrato e querer saber     
o que aconteceu
- mas nesse momento em que já dificilmente      
se articulavam as palavras
tu olhaste as horas e desceste as escadas em silêncio 
porque assim eu tinha pedido que fizesses

e a dona do hotel a prometer-nos
para além de domingos de sol
despedidas breves e indolores




Alice Vieira (2007) Dois corpos tombando na água, Poesia, Lisboa: Caminho (p. 13, 17-19).

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