venerdì 28 novembre 2014

Poema para Musil, de Maria Gabriela Llansol

Tirar-te o que escondes, roubar-te o trajo,
A tatuagem e a veste. Ver-te.
Rasgar a imagem que trazes diante de ti.

Avançar para o teu rosto
E num golpe contemplativo,
Cegar-te.

Privar-te de luz,
Que entres em pânico,
No medo e na ansiedade.

Encostar-me a ti, sem nada,
E murmurar-te ao ouvido
Renasce.

Nesse corpo desmunido,
Perguntar para quê tanta violência,
Se me bastava passar ao largo
E não ver
Esse 
Apelo ciciado.

Troquemos de veste. É uma ordem.



Maria Gabriela Llansol (2000). Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio d'Água.
VII. Oferendas, p. 285-286, seguido de comentário (p. 286-287)

Poema para Rilke, de Maria Gabriela Llansol

Vi os faunos da nova era
No seu bosque,
A praia.

Não vi quando o olhar começou.
Um instantâneo abandonado pelo entardecer,
Rapariga de treze anos viva,
Em maillot sentada,
Brincando com os pés n'areia.

Foi o cós que me chamou
E achei graça no início do seio,
Encoberto todavia. E todavia aberto.

Levantou-se. Atravessou o areal
E voltou depois com um rapaz
De quinze anos vivo,
Com calções coloridos.

Riam
Deitaram-se na areia, excitando-se.
Os cabelos dela, longos, pestanejando nas pernas dele.
As quatro mãos
Fugindo do que fugiam, acariciavam
Os bordos do atractivo.

Foi quando o aberto se veio sentar entre eles,
Que um clarão lhes incendiou as partes proibidas e o meu olhar
Me levou a ver
A ninfa e o fauno, figuras primícias do novo encanto.

Depois o aberto desvaneceu-se,
E deixou de haver luz naquele drama. Guardei o instantâneo
E arquivei o poema
Na minha colecção.



Maria Gabriela Llansol (2000). Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio d'Água.
VII. Oferendas, p. 283-284

lunedì 24 novembre 2014

II (III) e VIII (V), de Maria Gabriela Llansol

II

Foi quando o sonho caiu sobre a árvore ________ e a abateu.



VIII

_____________ estava eu na cama trocando palavras de ternura quando acordei
por ouvir abater uma árvore; sentei-me fora da minha natureza, e reparei

que o pinheiro abatido, envolto em hera,
me entregava uma mensagem

«um eu é pouco para o que está em causa».



Maria Gabriela Llansol (2000). Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio d'Água.
III. Em busca da troca verdadeira, p. 53
V. Apoptose, p. 182

Poema para Aossê, de Maria Gabriela Llansol

Dá-me um copo de água,
a boca dess'ar fresco,
a neblina que cai no jarro d'ar,

falo para o espelho
e peço à minha imagem
o que não ousaria pedir,
nem a mim próprio.

Dá-me a paisagem onde a amante dorme.


Maria Gabriela Llansol (2000). Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio d'Água.
"II. Oferendas", p.41.

domenica 23 novembre 2014

Desperado, de Rui Costa

O índio não percebe o cowboy e o cowboy não percebe a mãe. A mãe do cowboy é católica, fala para dentro, tem dentes de cereja que as visitas engolem com os olhos, como crianças tolas com as mãos todas que merecem. A mãe é católica mas nunca se queixa porque gosta de índios e cowboys, propendendo igualmente a um pequenino gozo com a incomodidade que o progresso recicla. Não lava as mãos, coça a barriga, pensa noutra coisa quando lhe destróis o dia. A mãe do índio grita mais ainda e eis que a lua começa. Do lado do sol, a mãe do cowboy enche-se de esgrimas e reza com grinaldas nas orelhas entre veredas finas. O amor da mãe pelo filho é uma luta entre o sol e a lua, com estepes ao fundo onde esquecemos tudo o que passamos a vida a perder.



In O pequeno-almoço de Carla Bruni, Ayuntamiento de Punta Umbría / Livrododia, 2008 – colección Palabra Ibérica. Recolhido do blog Poesia distribuída na rua., de Rui Almeida (http://ruialme.blogspot.pt/2012/02/rui-costa-breve-esta-manha-comecei.html). 

Sem título, de Rui Costa

Os anjos são recicláveis e a literatura
controla o tráfego aéreo. No porão do
pensamento acenamos à suavidade,
enquanto Deus é uma sala de fisioterapia.
Conservamos as fábricas de electricidade
em níveis aceitáveis de educação sentimental.
Somos homens negros paridores da luz.




Recolhido do artigo de Maria João Cantinho (2014). Periscópio 3. Sobre Rui Costa. Zunái – Revista de Poesia e Debates, Volume 1, N° 4 (http://zunai.com.br/post/56776333667/periscopio-3). 

lunedì 17 novembre 2014

A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos, de Rui Costa

A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos.
Era fria, de malas vazias a remendar a base
e dissemos pedra sobre pedra sobre pedra.
morreram: os meus amigos vinham jantar
com a terra. E não havia nada para lhes dar
a não ser a máquina de erguer janelas rente
aos ombros. Aquecia-se água, descia junto à pele
o lume: apertando os ossos, imaginando o respirar
mais fino. As colheres eram pequenas fantasias
do sono, animais que abriam muito os olhos
o lume: apertando os ossos, imaginando o respirar
mais fino. As colheres eram pequenas fantasias
do sono, animais que abriam muito os olhos
o método da penumbra que escapara à melancolia aberta
por fora. Mas por fora já não havia nada:
e nós amámos a casa como um osso
no interior da
pedra.


Recolhido do artigo de Vera Vouga (2005). A NUVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES ou a existência de um chão que não precisa de voar. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, pp. 655-668 (http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4750.pdf).

Senhora de Londres escolhendo limões, de Rui Costa

Não, nem todo o limão é amarelo quando
a mão de alguém o toca e humaniza, pequeno deus
aos tombos do céu de um pensamento manual e
exigente. Às vezes, quando a sede não é muita, 
um do fundo é erguido à altura do olhar e então,
por mágica rotação da sorte que nos astros se reflecte,
encontra uma outra luz na mão que o recebe e deposita
em morada assaz prosaica e de plástico. Na vida,
a caminho do futuro que ele nunca saberá onde fica,
o limão continuará a ser inteiro
e o seu sumo continuará a ser sumo,
pela mesma sábia razão por que a história dos homens
é sempre muito maior do que eles.


Recolhido do blog Poetas Siglo XXI, de Fernando Sabido (http://poetassigloveintiuno.blogspot.pt/2013/05/rui-costa-9717.html)