domenica 11 gennaio 2015

Dois corpos tombando na água (1., 8. e 9.), Alice Vieira

1.

da porta do café via-se a rua   foi assim
que eu comecei por falar de ti aos meus amigos
como se fosses mais uma árvore a nascer
entre os carros da cidade

e para lá da rua   continuei   um cão
perdido sem coleira   murmuro de repente
a memória trazendo-rne sem querer o nome
daquele romance do Cesbron que estava tão na moda
nesse tempo em que pensávamos que a literatura
ia salvar o mundo

muito possivelmente nem te lembras      
que livro foi esse que então lemos juntos
e sublinhámos  e soubemos de cor  e se calhar
é bem melhor assim  nunca
se deve regressar aos livros onde fomos felizes  
esta é  como deves saber  uma regra a não quebrar
em caso algum

olho agora para ti e sei que muitas estradas
envolveram de pó os passos que te procuravam 
e as palavras nem sempre foram    concordo as
que teriam sido necessárias para que uma noite
o meu nome rompesse de ti como um sopro impuro
e fechasses os olhos à tímida recordação
do que em ti apressadamente
há tantos anos eu tinha deixado

mas nesse tempo os meus olhos
tinham lançado raízes por dentro de outros olhos
que me ensinavam como era perigoso
adormecer assim esmagada entre vozes
que nos obrigavam a repetir muitas vezes
que nunca se morre suficientemente perto do verão

e foi então que os meus silêncios se transformaram    
em luminosos vocábulos de quem ensaiava
a correcta e surpreendente caligrafia
das palavras feitas à nossa imagem
que eu talvez tivesse um dia aprendido   
no leite morno da tua língua
mas logo esquecera e ninguém me avisara que tudo
poderia recomeçar muitos anos depois       
limpidamente e sempre pela primeira vez
e o tempo tornou-se tão inteiro e intocável
que eu não podia sequer imaginar

que a tua vida se desfazia em gotas de raiva e soro              
ao longo de estilhaçados corredores

a tua vida
que há muito não passava pelos mapas da minha errância
mas que um dia se entrelaçara no meu sangue
e respirara ao ritmo do nosso desejo e a isso
alguém poderia ter chamado    quem sabe    destino
e agora se inscreve perfeitamente
na imagem definida daquele minúsculo oásis
entre sebes e laranjeiras bravas
que um dia habitei contigo
no desamparado deserto dos nossos corpos
quando eu chegava e tu sabias
que a dor se tinha tornado de repente insuportável

hoje queria apenas que entendesses
que a alegria também pode ser    e pelos mesmos motivos

verdadeiramente insuportável



8.

havemos de ser outros amanhã
ou daqui a momentos    ou já agora
e dificilmente reconheceremos o espaço da alegria     
em que noutras horas chegámos a nascer

e então meu amor
(não sei se reparaste mas é a primeira vez que
escrevo meu amor)
teremos nos olhos a cor sem cor  
das roupas muito usadas
e guardaremos os despojos das noites  
em que tudo sem querer nos magoava 
nas gavetas daqueles velhos armários 
com cheiro a cânfora e a tempo inútil 
onde há muitos anos esquecemos 
um postal da Torre de Belém em tons de azul     
e um bilhete para a matiné das seis no S. Jorge
onde um homem            (que muitos anos depois
segundo me contaram se suicidou)
tocava órgão nos intervalos em que
nos beijávamos às escondidas

e dessas gavetas rebenta a poeira do tempo
que matámos a frio dentro de nós
com os filhos que perdemos em camas de ninguém
e as pedras que nasceram no lugar das cinzas
e havemos de perguntar    (mesmo sabendo
que já não há ninguém para nos responder)
por que foi que nos largaram no mundo
vestidos de tão frágeis certezas
por que nos abandonaram assim
no rebentar de todas as tempestades
sabendo que o futuro que nos prometiam batia
ao ritmo das horas que já tinham sido
destinadas a outros e nunca
voltariam a tempo de nos salvar

mas enquanto vai escorrendo dos nossos dedos o pó
desses lugares onde ainda há vozes
que não desistiram de perguntar por nós
vamos bebendo a água inicial das nossas línguas  
um ao outro devolvendo o pouco
que conseguimos salvar de todos os dilúvios



9.

subitamente as palavras romperam de nós com
uma fúria que não lhes conhecíamos

quebraram os dolorosos casulos de domingo
quando todos os amigos decidiam partir
deixando-nos   naquela inesperada ausência
muito mais perdidos

mas pelo meio de todas as palavras agrestes                     
a tua recordação é de repente a palavra                       
mais agreste de todas
que risca no meu silêncio um destino de luas e marés     
a que é perigoso habituar-me assim
e             talvez por isso   avanço com dificuldade
pelas letras esquivas do teu nome
como se um animal bravio o rasgasse dentro de mim
e ele se tornasse             de uma hora para a outra
no meu crime mais imperdoável

como se te erguesses e dissesses ficarás
condenada por todos os desertos que espalhaste
sobre os meus dias        e terás a cor
de todas as feridas que abriste no meu sangue
e as tempestades vão alagar o teu ventre que não soube
resguardar os filhos que nele deixei
(como me disseste na única carta que de ti guardei e tu
sabe-se lá porquê           nunca escreveste)

e as palavras vão servir-nos apenas de passagem
para um mundo donde não se regressa
e o teu corpo ficará cada vez mais longe
- e as pessoas que em tempos nos amaram muito
vão agora escrever a nossa história
com as gotas de luz que sobraram
de todos os solstícios

adormecendo às vezes ligeiramente
entre dois capítulos mais tristes 



Alice Vieira (2007) Dois corpos tombando na água, Poesia, Lisboa: Caminho (p. 23-25, 37-38, 39-40).

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