Oratório
meninos jogam
capoeira
em frente ao muro da creche
onde, escrita a tiros,
lê-se a epígrafe destes dias
jogam
capoeira
entre os ramos do berimbau
antes da chuva
com as nuvens
-
os tijolos vermelhos lodosos
as casas pela metade
andaimes, latas de tinta vazias,
pedras, cimento, cal
enquanto os burrocratas
do pensamento
discutem mais-valia & idolatria
mercancia & democracia
lucracia & poesia
na sala de justiça
dos bem-nascidos
& rebocam sua vaidade & idiotia
na cara da geral,
outra poesia é feita
neste mundo
na universidade desconhecida
na vida sem fim
de quem chegou até aqui
derrubando, aos murros, o muro
moldando o mundo a muque
-
(...)
ainda que exausta
a existência não fechou seus olhos
uma velhinha no ônibus
me ofereceu uma oração
& seu riso desmantelou
todos os músculos do seu rosto
não rezei com ela
fizemos silêncio juntos
& nos exilamos em nosso subúrbio portátil
sob uma cortina de sangue
onde, do outro lado,
havia um cão sarnento tremendo de frio
& um bailarino impecil
pedindo mais conhaque
Poema n.15
a fotografia sobre a cristaleira
(lembrança de tua avó)
toma conta da sala
(teus olhos,
pequenos sóis
tornando mais belo
o universo
de luzes
que é teu rosto,
umedecem
os meus)
lá fora,
a tarde derruba meus malabares
os pássaros
não suspeitam
do conteúdo
desta carta
e nesta caligrafia
- noite marítima
soprando brisas
sobre esta folha
de amarelos múltiplos -
caminhas comigo
Fabiano Calixto (2014) Equatorial, Lisboa: Tinta-da-China (p. 20-23, 79), poemas originalmente publicados em Música possível (2006)
personagem invisível
lunedì 26 gennaio 2015
domenica 25 gennaio 2015
Para ninar o nosso naufrágio, Fabiano Calixto
Versos de circunstância
da noite mais azeda
do meio da treta
do atrito gritando na greta
do leblon
(brumas de avalon
na babylon de cabral, el cabrón)
um vândalo urra:
«i am the one
osgasmatron!»
na cidade de são paulo
(metrópole por um fio,
desactivada, reacionária & vil
abastada de grana & rivotril)
lemos todos (anotando)
uma escrota escritarada
serva, suja, súdita
que não diz nada
ossos do difícil ofício
de levar a vida
na base da porrada
pra desopilar a cuca
um café, umas tragadas
ventania & bem-te-vi
prosa minada
gargalhadas
dizem que com pelos
não pega nada
mas, se lisinha
é de morte a picada
aranha peluda
aranha pelada
Haicaizinho de estação
no rádio velho, a baladinhs de James Blunt
que, quentinha, me fez lembrar
que a saudade tem memória de elefante
Rock in Rio, 1985
a vida pinga um colírio
no olho da gente
e vai embora
A METÁFORA
saiu de pink
com sua suástica de pelúcia
e foi comprar flores
na floricultura da Lúcia
(floricultura, I'll be there)
a metáfora
botou a pica
em cima da mesa
e disse:
«a morte da metáfora é uma metáfora, porra!»
(quatro vezes seguidas
com voz muito alta
balançando na mão esquerda
a orelha de Van Gogh)
O homem mais triste do mundo
(...)
3.1
o bacana é que a lágrima minha
na lágrima tua
deu um duo, mil suspiros de afeto
um núcleo puro - e duro
uma eternidade num minifuturo
e vai ficar pra gente
como o último abraço de uma avó
é, baby, no final das contas
acho que nunca é mesmo tarde
e que o sol não adivinha nada
cultivemos esse silêncio azul entre as estrelas
como se fosse nosso
Fabiano Calixto (2014) Equatorial, Lisboa: Tinta-da-China (p. 25-26, 36, 38, 67, 117), poemas originalmente publicados em Para ninar o nosso naufrágio (2013)
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domenica 18 gennaio 2015
Poemas depois do fim, Fernando Assis Pacheco
R., 1992
Quando os anos passarem
sobre esse teu desgosto
vais ver que te curaste
não de vez mas um pouco
pois o que a gente busca
nas dobras do amor
é a cura para a morte
que não tem consolo
e por falar em f'ridas
até as que mais foem
acabam por fechar
só ela vence o corpo
Sacado da Gasparina
Piangerò arderò canterò sempre*
como fazem as almas namoradas
sobretudo em verso e mais as castigadas
pelos demónios que transportam dentro
o amor toca a todas as espécies
mas à humana muito em particular
desde os primeiros bípedes do Afar
que supõe-se o enumeravam entre as febres
como ponta de cigarro no arvoredo
que se transforma logo em fogo basto
fica de ele passar só cinza mas
io d'arder amando non mi pento*
* Gaspara Stampa, Rime, 1554
Fernando Assis Pacheco (2003) Respiração Assistida, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 23, 42.
Dicas de leitura, 1. Leonard Cohen
Como dizer poesia
Tomemos a palavra borboleta. Para usar esta palavra não é preciso fazer com que a voz pese menos de um grama nem dotá-la de asinhas poeirentas. Não é preciso inventar um dia de sol nem um campo de narcisos. Não é preciso estar-se apaixonado, nem estar-se apaixonado por borboletas. A palavra borboleta não é uma borboleta real. Existe a palavra e existe a borboleta. Se confundires estas duas coisas darás razão a quem queira rir-se de ti. Não atribuas grande importância à palavra. Estarás a tentar insinuar que amas as borboletas de uma forma mais perfeita do que qualquer outra pessoa, ou que compreendes a sua natureza? A palavra borboleta não passa de informação. Não é uma oportunidade para pairares, levitares, aliares-te às flores, simbolizares a beleza e a fragilidade, nem de modo nenhum personificares uma borboleta. Não representes palavras. Nunca representes palavras. Nunca tentes tirar os pés do chão ao falares de voar. Nunca feches os olhos, tombando a cabeça para um dos lados, ao falares da morte. Não fixes em mim os teus olhos ardentes ao falares de amor. Se quiseres impressionar-me ao falares de amor mete a mão no bolso ou por baixo do vestido e toca-te. Se a ambição e a sede de aplausos te levaram a falar de amor deverás aprender a fazê-lo sem te envergonhares a ti mesmo nem às tuas fontes.
Qual é a expressão exigida pela nossa época? A época não exige expressão nenhuma. Já vimos fotografias de mães asiáticas enlutadas. Não estamos interessados na agonia dos teus órgãos remexidos. Não há nada que possas estampar no teu rosto que se equipare ao horror desta época. Nem sequer tentes. Apenas te sujeitarás ao desdém daqueles que sentiram profundamente as coisas. Já assistimos a películas de seres humanos em pontos extremos de dor e desenraizamento. Toda a gente sabe que andas a comer bem e que estás até a ser pago para estares aí em cima. Estás a actuar diante de pessoas que passaram por uma catástrofe. Tal facto deverá tornar-te bastante discreto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Toda a gente sabe que estás a sofrer. Não poderás contar à plateia tudo o que sabes sobre o amor a cada verso de amor que disseres. Chega-te para o lado e as pessoas saberão o que tu sabes por já o saberes. Nada tens para lhes ensinar. Tu não és mais belo do que elas. Não és mais sábio. Não lhes grites. Não forces uma penetração a seco. É mau sexo. Se revelares o contorno dos teus genitais, então cumpre o que prometes. E lembra-te que as pessoas não desejam propriamente um acrobata na cama. De que é que nós precisamos? De estar perto do homem natural, de estar perto da mulher natural. Não finjas que és um cantor adorado com um público vasto e leal que tem vindo a acompanhar os altos e baixos da tua vida até ao momento presente. As bombas, os lança-chamas e essas merdas todas não destruíram apenas árvores e aldeias. Destruíram igualmente o palco. Achaste que a tua profissão escaparia à destruição geral? Já não há palco. Já não há ribalta. Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Fica a sós. Fica no teu canto. Não te insinues.
Trata-se de uma paisagem interior. É por dentro. É privado. Respeita a privacidade do texto. Estas obras foram escritas em silêncio. A coragem da actuação é dizê-las. A disciplina da actuação é não as violar. Deixa que o público sinta o teu amor pela privacidade ainda que não haja privacidade. Sejam boas putas. O poema não é um slogan. Não poderá publicitar-te. Não poderá promover a tua reputação de seres sensível. Tu não és um garanhão. Tu não és uma mulher fatal. Toda essa treta relacionada com os bandidos do amor. Vocês são estudantes da disciplina. Não representes as palavras. As palavras morrem se as representares, murcham, e a única coisa que sobrará será a tua ambição.
Diz as palavras com a exacta precisão com que verificas uma lista de roupa suja. Não te comovas com a blusa de renda. Não fiques de pau feito ao dizer cuecas. Não te arrepies todo só por causa da toalha. Os lençóis não deverão suscitar à volta dos olhos uma expressão sonhadora. Não é preciso chorar agarrado a um lenço. As meias não estão lá para te recordar viagens estranhas e longínquas. É só a tua roupa suja. São só as tuas peças de roupa. Não espreites através delas. Veste-as.
O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior. Se o declamares e deres cabo dele com nobres intenções, então não serás melhor do que os políticos que desprezas. Não passarás de uma pessoa a agitar uma bandeira e a realizar o apelo mais reles a uma espécie de patriotismo emocional. Pensa nas palavras como sendo ciência e não arte. Elas são um relatório. Tu estás a falar num encontro do Clube de Exploradores da National Geographic. As pessoas que tens à tua frente conhecem todos os riscos do montanhismo. Honram-te partindo desse princípio. Se lhes esfregares isso na cara, será um insulto à sua hospitalidade. Fala-lhes da altura da montanha, do equipamento que usaste, sê rigoroso em relação às superfícies e ao tempo que demoraste a escalá-la. Não manipules o público à caça de bocas abertas e suspiros. Se mereceres as bocas abertas e os suspiros, isso não se deverá à avaliação que fizeres do acontecimento, mas à que o público fizer. Resultará da estatística e não do tremer da tua voz nem das tuas mãos a cortar o ar. Resultará dos dados e da discreta organização da tua presença.
Evita os floreados. Não tenhas medo da fraqueza. Não tenhas vergonha do cansaço. O cansaço dá-te bom ar. O ar de quem seria capaz de nunca mais parar. Agora, entrega-te aos meus braços. Tu és a imagem da minha beleza.
"How to speak poetry" de Leonard Cohen, tradução de Vasco Gato, partilhado por Pedro Lamares
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sabato 17 gennaio 2015
Poesia para Cuidar dos vivos, Fernando Assis Pacheco
Poeta no supermercado
1.
Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas.
Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.
Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.
2.
Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.
Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.
Cheio de luz - como um sol,
beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.
Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.
Fernando Assis Pacheco (1968) Cuidar dos Vivos, Coimbra : Cancioneiro Vértice; re-publicado em A Musa Irregular (2006) Assírio & Alvim.
Poemas de guerra, Fernando Assis Pacheco
Monólogo e explicação
Mas não puxei atrás a culatra, não
limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.
Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.
Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.
Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.
Morro do Aragão
Encosto a cabeça a um pneu / acendo
o cigarro / passarão anos sobre esta
lembrança entontecida.
Amanhã dormirei? /
foi agora que a morte / o
sono dentro da cabeça /
este pneu sobre a lama.
Luzes de Nambuangongo
ao longe, amanhã estarei
deitado no meu catre.
As cartas enlouquecem / casa, pai!
Foi agora que as luzes. O sono,
o pneu / o cigarro sujo.
Pacheco. O. K.? A mão pesada
dentro do bolso / o sono
sobre o pneu.
Noite, noite entontecida.
Passarão anos, nascerão filhos
muito antes que eu esqueça.
O. K., O. K. / rio de trevas.
Umas cobras
Vindima, areia no rio?
Não me escrevam.
Deito-me com cobras.
Enrolam-se. Eu masmorro-me.
Deixem as cartas para outra altura.
Escrevam: nada.
Responderei coiso: nada.
Elas mostram a língua.
Vêm muito devagar,
caem nos rios
com um baque inesperado.
Mijou-se. Era eu.
Escrevam postais
apenas: sim, bem,
Julho.
Vou defender-me.
Vibrato
Rir muito. Por exemplo de manhã
ao lavar os dentes.
Por exemplo quando te perguntam
«gosta» e tu respondes
«se é da guerra, mas?» e alguém
do lado sempre insiste
«gosta, gosta» e por exemplo.
Vir até à porta, ver a vista,
rir muito.
Por exemplo de noite depois do
brândi que deixa cair pelas goelas
essa lama (e tu respondes:) pedra.
Então, se te perguntam, vais deitar-te,
olhar a escova, palpar o tubo
de pasta com que ao outro dia
de manhã (os dentes)
por exemplo. É o sol, rir muito,
deves rir muito, e de contínuo,
rir em flauta: o vibrato
correctamente feito
lá em baixo no diafragma.
Um dia tu aprendes.
Fernando Assis Pacheco (1976) Catalabanza Quilolo e Volta, Coimbra: Nosso Tempo, p. 15, 22, 33, 38 (poemas previamente publicados em 1972, sob o disfarce vietnamita de Câu Kiên: um resumo, Lisboa, edição de autor)
domenica 11 gennaio 2015
Dois corpos tombando na água (1., 8. e 9.), Alice Vieira
1.
da porta do café via-se a rua foi assim
que eu comecei por falar de ti aos meus amigos
como se fosses mais uma árvore a nascer
entre os carros da cidade
e para lá da rua
continuei um cão
perdido sem coleira
murmuro de repente
a memória trazendo-rne sem querer o nome
daquele romance do Cesbron que estava tão na moda
nesse tempo em que pensávamos que a literatura
ia salvar o mundo
muito possivelmente nem te lembras
que livro foi esse que então lemos juntos
e sublinhámos e
soubemos de cor e se calhar
é bem melhor assim
nunca
se deve regressar aos livros onde fomos felizes
esta é como deves
saber uma regra a não quebrar
em caso algum
olho agora para ti e sei que muitas estradas
envolveram de pó os passos que te procuravam
e as palavras nem sempre foram concordo as
que teriam sido necessárias para que uma noite
o meu nome rompesse de ti como um sopro impuro
e fechasses os olhos à tímida recordação
do que em ti apressadamente
há tantos anos eu tinha deixado
mas nesse tempo os meus olhos
tinham lançado raízes por dentro de outros olhos
que me ensinavam como era perigoso
adormecer assim esmagada entre vozes
que nos obrigavam a repetir muitas vezes
que nunca se morre suficientemente perto do verão
e foi então que os meus silêncios se transformaram
em luminosos vocábulos de quem ensaiava
a correcta e surpreendente caligrafia
das palavras feitas à nossa imagem
que eu talvez tivesse um dia aprendido
no leite morno da tua língua
mas logo esquecera e ninguém me avisara que tudo
poderia recomeçar muitos anos depois
limpidamente e sempre pela primeira vez
e o tempo tornou-se tão inteiro e intocável
que eu não podia sequer imaginar
que a tua vida se desfazia em gotas de raiva e soro
ao longo de estilhaçados corredores
a tua vida
que há muito não passava pelos mapas da minha errância
mas que um dia se entrelaçara no meu sangue
e respirara ao ritmo do nosso desejo e a isso
alguém poderia ter chamado
quem sabe destino
e agora se inscreve perfeitamente
na imagem definida daquele minúsculo oásis
entre sebes e laranjeiras bravas
que um dia habitei contigo
no desamparado deserto dos nossos corpos
quando eu chegava e tu sabias
que a dor se tinha tornado de repente insuportável
hoje queria apenas que entendesses
que a alegria também pode ser e pelos mesmos motivos
verdadeiramente insuportável
8.
havemos de ser outros amanhã
ou daqui a momentos
ou já agora
e dificilmente reconheceremos o espaço da alegria
em que noutras horas chegámos a nascer
e então meu amor
(não sei se reparaste mas é a primeira vez que
escrevo meu amor)
teremos nos olhos a cor sem cor
das roupas muito usadas
e guardaremos os despojos das noites
em que tudo sem querer nos magoava
nas gavetas daqueles velhos armários
com cheiro a cânfora e a tempo inútil
onde há muitos anos esquecemos
um postal da Torre de Belém em tons de azul
e um bilhete para a matiné das seis no S. Jorge
onde um homem (que
muitos anos depois
segundo me contaram se
suicidou)
tocava órgão nos intervalos em que
nos beijávamos às escondidas
e dessas gavetas rebenta a poeira do tempo
que matámos a frio dentro de nós
com os filhos que perdemos em camas de ninguém
e as pedras que nasceram no lugar das cinzas
e havemos de perguntar
(mesmo sabendo
que já não há ninguém para nos responder)
por que foi que nos largaram no mundo
vestidos de tão frágeis certezas
por que nos abandonaram assim
no rebentar de todas as tempestades
sabendo que o futuro que nos prometiam batia
ao ritmo das horas que já tinham sido
destinadas a outros e nunca
voltariam a tempo de nos salvar
mas enquanto vai escorrendo dos nossos dedos o pó
desses lugares onde ainda há vozes
que não desistiram de perguntar por nós
vamos bebendo a água inicial das nossas línguas
um ao outro devolvendo o pouco
que conseguimos salvar de todos os dilúvios
9.
subitamente as palavras romperam de nós com
uma fúria que não lhes conhecíamos
quebraram os dolorosos casulos de domingo
quando todos os amigos decidiam partir
deixando-nos naquela
inesperada ausência
muito mais perdidos
mas pelo meio de todas as palavras agrestes
a tua recordação é de repente a palavra
mais agreste de todas
que risca no meu silêncio um destino de luas e marés
a que é perigoso habituar-me assim
e talvez
por isso avanço com dificuldade
pelas letras esquivas do teu nome
como se um animal bravio o rasgasse dentro de mim
e ele se tornasse de
uma hora para a outra
no meu crime mais imperdoável
como se te erguesses e dissesses ficarás
condenada por todos os desertos que espalhaste
sobre
os meus dias e terás a cor
de todas as feridas que abriste no meu sangue
e as tempestades vão alagar o teu ventre que não soube
resguardar os filhos que nele deixei
(como me disseste na única carta que de ti guardei e tu
sabe-se lá porquê nunca
escreveste)
e as palavras vão servir-nos apenas de passagem
para um mundo donde não se regressa
e o teu corpo ficará cada vez mais longe
- e as pessoas que em tempos nos amaram muito
vão agora escrever a nossa história
com as gotas de luz que sobraram
de todos os solstícios
adormecendo às vezes ligeiramente
entre dois capítulos mais tristes
Alice Vieira (2007) Dois corpos tombando na água, Poesia, Lisboa: Caminho (p. 23-25, 37-38, 39-40).
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